Dossiê 49, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no século XIX e início do XX: Aspectos Formativos
Em tempos idos, Manuel Ferreira analisou a produção literária dos intelectuais africanos envolvidos na Casa dos Estudantes do Império (1944–1965) e, num texto intitulado “Metamorfose e premonição”, afirma que o período de 1947–1955 é responsável por estabelecer um panorama que “desde Luanda a Lourenço Marques, passando por Lisboa e Coimbra, por intermédio da dinamização cultural e literária, é reveladora, do ponto de vista africano, da vivência de um determinado tempo cultural: o da assunção da africanidade, o da consciência nacional, um amadurecimento da identidade nacional e da consciência colectiva” (1982, p. XX). Inevitavelmente imbricada a esta dinâmica, a construção dos estudos de literaturas africanas percebeu desde muito logo a importância da inflexão nacionalista para a própria constituição do seu corpus.
Neste movimento, entretanto, a vasta produção literária africana em língua portuguesa do século XIX e das primeiras três décadas do século XX (antes de 1947), em seus múltiplos significados, dinâmicas, propostas e empenhos, muitas vezes foi posicionada sob uma perspectiva que sempre ressalta sua debilidade em relação ao nacionalismo subsequente. Essa vasta e polissêmica produção costuma ser enquadrada como “protonacionalista” (no dizer de M. P. de Andrade), assimilada, “euroafricana” (na terminologia ainda de M. Ferreira), ainda não reveladora de uma expressão das “raízes profundas da realidade social nacional” (M. Ferreira, 1989, p. 33), levando as análises a centrarem-se apenas em epígonos que desenham uma narrativa de devir histórico cujo ponto de fuga (e fim) são as independências e o protagonismo histórico das elites partidárias responsáveis pela emancipação política dos países africanos. O crítico César Braga Pinto, em análise à produção de O brado africano, argumenta que a leitura das obras do período como “protonacionalistas” constitui uma visada “pós-independentista”, que “enfatiza teleologicamente a soberania do estado-nação pós-colonial, e arrisca ofuscar algumas das contradições e dilemas vividos pelo intelectual africano, sobretudo na primeira metade do século 20” (2015, p. 12).
Em outra mão, há testemunhos muito diversos que apontam para a circulação de escritas africanas profícuas em língua portuguesa, das quais há exemplos, entre muitos outros, em Angola, como José da Silva Maia Ferreira, Pedro Félix Machado, Joaquim Dias Cordeiro da Matta; em Moçambique, como Campos de Oliveira, Arthur Serrano e toda a intelectualidade à volta de O brado africano (1908–1975); em São Tomé e Príncipe, com Caetano Costa Alegre e Marcelo da Veiga; em Cabo Verde, José Evaristo d’Almeida, Guilherme da Cunha Dantas, Eugénio Tavares, ou ainda o caso do Almanach de lembranças luso-brasileiro (com o nome variável), cuja publicação entre 1851 e 1932 aproximou escritores do espaço global da língua portuguesa de modo ainda hoje incomparável.
Para este dossiê da revista Via Atlântica, portanto, esperamos receber contribuições reveladoras de objetos de estudo e metodologias inovadoras, que busquem olhar para além dos binarismos instituídos pelos liames do paradigma euro-ocidental, voltadas para a circulação de textos literários em língua portuguesa entre o século XIX e início do XX, antes do período de 1947–1955, responsável pela grande inflexão nacionalista. Quais são os escritores e escritas e linhas de força mais representativas daqueles períodos? Quais são os ajustes teóricos e metodológicos necessários para observar essas produções? Sob quais paradigmas e pressupostos conceituais tais produções podem ser analisadas? Quais são as contribuições interdisciplinares e transdisciplinares necessárias para seu estudo e compreensão?
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário P. Origens do nacionalismo africano: continuidade e ruptura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa, 1911–1961. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano. Lisboa: Plátano, 1989.
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986. p. 13–46.
FERREIRA, Manuel. Metamorfose e premonição. In: TENREIRO, Francisco José; ANDRADE, Mário P. (org.). Poesia negra de expressão portuguesa. Lisboa: África, 1982. p. 9-46.
PINTO, César Braga. José Francisco Albasini e a saúde no corpus moçambicano. In: ALBASINI, José. À procura da saúde: crónicas de um doente. Maputo: Alcance, 2015. p. 9-26.
EIXOS TEMÁTICOS:
- Desafios à crítica textual das literaturas africanas de língua portuguesa no século XIX: edições e variações;
- Em busca do corpus: autores e obras africanas de língua portuguesa publicadas entre o século XIX e as primeiras décadas do XX;
- A imprensa periódica e as literaturas africanas de língua portuguesa no século XIX e as primeiras décadas do XX: meios de edição e publicação;
- Convenções literárias, padrões e rupturas estéticas nas literaturas africanas de língua portuguesa no século XIX e as primeiras décadas do XX;
- Para além da inflexão nacional: questões teóricas e críticas acerca das literaturas africanas de língua portuguesa entre o século XIX e as primeiras décadas do XX;
- Leituras sociais e políticas das literaturas africanas de língua portuguesa entre o século XIX e as primeiras décadas do XX.
ORGANIZAÇÃO
Ubiratã Souza (Universidade de São Paulo, Brasil); César Braga Pinto (Northwestern University, Estados Unidos da América); Helena Wakim Moreno (Universidade Federal Fluminense, Brasil).
Prazo para o envio dos trabalhos: 1º de outubro de 2024 a 31 de março de 2025.
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