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Wed, 10 Mar 2021 in Linha D'Água
ARQUITETÔNICA, RELAÇÕES DIALÓGICAS E METALINGUÍSTICA: A BASE DO PENSAMENTO BAKHTINIANO
Resumo
Este estudo é parte da reflexão teórica realizada na tese de doutorado desenvolvida até 2019 em que utilizamos como base a arquitetônica bakhtiniana, que pode ser entendida de duas formas: como sistematizador da teoria, que engloba as categorias filosóficas de compreensão de mundo e como um todo englobante, organizador de sentido num enunciado concreto e realizado num ato responsável. Durante a pesquisa, percebemos a importância da conexão entre a arquitetônica e o conceito de relações dialógicas, criado tardiamente em conjunto com a disciplina Metalinguística no livro sobre Dostoiévski de 1963. Aqui, buscamos compreender a construção do pensamento bakhtiniano através do desenvolvimento destes conceitos nas obras do Círculo de Bakhtin. Analisaremos os textos teóricos de Mikhail Bakhtin e também de outros pensadores do Círculo como Pável Medviédev e Valentin Volóchinov. Nesta análise, buscamos demonstrar a conexão entre arquitetônica, relações dialógicas e a disciplina Metalinguística enquanto base do pensamento bakhtiniano.
Main Text
Introdução
As reflexões acerca do conceito de arquitetônica começaram a ser desenvolvidas por Mikhail Bakhtin em seus escritos do início dos anos 1920. Em diversas obras, dele e também de outros pensadores do chamado Círculo de Bakhtin, é possível encontrar a menção ao conceito ou mesmo ecos de sua presença. Já o conceito de relações dialógicas e a proposta da disciplina Metalinguística só apareceram nas reflexões de Bakhtin a partir de sua obra, Problemas da Poética de Dostoiévski, publicada em 1963, segunda versão do livro quase homônimo Problemas da Obra de Dostoiévki de 1929. Foram mais de quarenta anos de diferença entre o início da construção da obra teórica do chamado Círculo de Bakhtin e a divulgação da nova disciplina proposta, a Metalinguística.
Na leitura de todos os escritos do Círculo, percebemos que há um percurso que vai sendo construído e que motiva o entrelaçamento desses conceitos e reflexões e assim demonstram a base do pensamento bakhtiniano. Ainda que o conceito de relações dialógicas só apareça na obra de 1963, a ideia de dialogismo e a importância das relações eu-outro como momentos da arquitetônica vêm desde os textos dos anos 1920. A concepção dialógica da linguagem foi sendo construída a cada novo texto e em diálogo com outros pensadores e, assim, desenvolvida toda a construção desse pensamento ao longo dos anos. Deste modo, é possível dizer que o embrião do que anos depois seria a proposta de uma nova disciplina, a Metalinguística, nasce junto com o conceito de arquitetônica.
Neste artigo, partiremos de uma ampla abordagem histórica e dialógica de obras do Círculo, traçando a conexão entre a arquitetônica e o que nos levaria às relações dialógicas nos anos 1960, e como esse percurso se conecta com a criação da disciplina Metalinguística. Será possível perceber ao longo do estudo, como a própria teoria propõe, que os conceitos-chave estão ligados por relações lógicas (e dialógicas) e assim compõem a arquitetônica bakhtiniana.
Não vamos nos deter em questões históricas dos integrantes do Círculo, porém essa história será introduzida quando necessário, mediante a exposição das reflexões.
1 O ato responsável e a construção do pensamento dialógico
O jovem, Mikhail Bakhtin, ainda era um estudante quando publicou o ensaio de apenas uma página intitulado “Arte e responsabilidade”, na Revista O dia da arte, na cidade de Nevel, em setembro de 1919. Note-se que este texto foi publicado menos de dois anos após a Revolução Russa de outubro de 1917, que teve como seu centro de atividade principal a cidade de Petrogrado1 onde Bakhtin residia no período. O texto em tom de manifesto demonstra um jovem pensador que começa a encontrar um tema que seria a base de reflexão de toda uma vida.
No ano seguinte, Bakhtin inicia a produção do que seria sua obra de filosofia moral e que posteriormente foi intitulado na tradução em português: Para uma filosofia do ato responsável. Desde as primeiras páginas deste que hoje é considerado seu primeiro livro, a compreensão da arquitetônica é tratada filosoficamente pelo viés sociológico e fenomenológico. O ser humano, para ele, está em relação constante com o mundo da vida e da cultura que o cerca e a experiência influencia o ato responsável desse ser que é participativo, assim como seu pensamento.
O ato real de cognição - não do interior de seu produto teórico abstrato (isto é, desde o interior de um juízo universalmente válido) mas como ato responsável - incorpora cada significado extratemporal no existir-evento singular. Todavia, a contraposição habitual entre a verdade eterna (istina) e a nossa temporalidade imperfeita possui um sentido não teórico; tal asserção inclui em si um certo sabor axiológico e assume um caráter emotivo-volitivo: eis aqui a verdade eterna (e isso é bom) e eis aqui a nossa imperfeita vida temporal, transitória, efêmera (e isso é mau). Mas temos aqui o caso de um pensamento participativo, sustentado em um tom penitente que busca superar o próprio caráter dado, em favor do que se coloca como algo que está para ser alcançado; mas tal pensamento participativo se desenvolve propriamente dentro da arquitetônica do existir do evento do qual estamos falando. (BAKHTIN, 2010a p. 55-56).
Ainda que o foco da obra seja uma proposta de filosofia da moral, o aspecto da linguagem já chamava a atenção de Bakhtin que entendia a importância do produto estético da comunicação humana como a relação do ser com o mundo. Ele diz que a linguagem deve ser “muito mais adaptada para exprimir exatamente esta verdade do que revelar o aspecto lógico abstrato na sua pureza.” (BAKHTIN, 2010a, p. 83). O jovem Bakhtin começa a apresentar seu pensamento. Este texto trazia uma densidade característica dos escritos filosóficos e buscava descrever o objetivo de filosofia moral, em diálogo com filósofos como Immanuel Kant e Henri Bergson anteriores a ele. Nessa obra, o filósofo da linguagem propõe a “arquitetônica do mundo real”, que trata da relação do ser com os outros seres e com o todo do mundo da vida e da cultura.
O mundo no qual o ato se orienta fundado na sua participação singular no existir: este é o objeto da filosofia moral. [...] ele tem a ver somente com uma pessoa única e com um objeto único [...] que lhe são dados em tons emotivos-volitivos individuais. [...] Mas estes mundos concreto-individuais, irrepetíveis de consciências que realmente agem (tem alguns componentes em comum: não nos conceitos de leis gerais, mas no sentido de momentos comuns das suas arquitetônicas concretas). É esta arquitetônica do mundo real do ato que a filosofia moral deve descrever, não como um esquema abstrato, mas como o plano concreto do mundo do ato unitário singular, os momentos concretos fundamentais de sua construção e da sua disposição recíproca. Estes momentos fundamentais são: eu-para-mim, o outro-para-mim, e eu-para-o-outro; todos os valores da vida real e da cultura se dispõem ao redor destes pontos arquitetônicos fundamentais do mundo real do ato: valores científicos, estéticos, políticos (incluindo também os éticos e sociais) e finalmente religiosos. (BAKHTIN, 2010a, p. 114)
A fundamentação do objeto de sua filosofia moral baseia-se em “O mundo no qual o ato se orienta fundado na sua participação singular no existir” e coloca a arquitetônica como um elemento estrutural concreto de seu sistema filosófico. Para ele, é “esta arquitetônica do mundo real do ato que a filosofia moral deve descrever” (BAKHTIN, 2010a, p. 114) e assim relaciona este mundo como aquele “no qual o ato se orienta fundado na sua participação singular no existir”. A arquitetônica acontece no ato (responsável). Este ato relaciona valores de seres concretos: eu-para-mim, o outro-para-mim, e eu-para-o-outro e acontece de maneira singular no tempo e no espaço, historicamente situados. Aqui é possível perceber os primeiros ecos do pensamento dialógico, no qual cada ser interdepende no existir-evento. Ninguém existe sozinho. Há sempre outro ser que me constitui e comprova minha existência no mundo da vida. Esta relação eu-outro enquanto acontecimento se dá por meio da linguagem.
A arquitetônica depende do contexto social e da realidade, da autoria responsável e dos fatores éticos no mundo da vida e da cultura. Assim, ela gera sentido (lógico) e auxilia a compreender o todo arquitetônico como centro de realização do ato responsável no mundo da vida. Neste ponto, é possível perceber a influência kantiana em seu pensamento. Para Kant, o sujeito comanda o objeto. Porém, em diversos pontos da obra, Bakhtin refuta Kant e seu pensamento sistemático que entende que a arquitetônica é a arte dos sistemas e está na razão pura.
O terceiro e penúltimo capítulo da obra, Crítica da Razão Pura, do filósofo alemão, Immanuel Kant, é intitulado “A arquitetônica da razão pura” e iniciado com a seguinte definição “Por arquitetônica eu entendo a arte dos sistemas.” (KANT, 2012, p. 600)2. Para Bakhtin, a arquitetônica estava na razão prática, como ato e em diálogo com tudo ao seu redor e sempre condicionado a um outro ser responsivo e responsável.
O jovem Bakhtin, neste momento, com vinte e poucos anos de vida, começava a entender o ser de consciência ativa e participativa, e sua relação com o mundo e este encontrando sentido num todo arquitetônico ao seu redor.
Para minha consciência ativa e participante esse mundo, como um todo arquitetônico é disposto em torno de mim como único centro de realização do meu ato; [...] me realizo em minha ação visão, ação pensamento, ação-fazer prático. Em correlação com o meu lugar particular que é o lugar do qual parte a minha atividade no mundo, todas as relações espaciais-temporais pensáveis adquirem um centro de valores em volta do qual compõem um determinado conjunto arquitetônico concreto estável e a unidade possível se torna singularidade real. [...] Este centro não é imanente [...] No interior do sistema, cada componente desta unidade é logicamente necessário mas o sistema em si no seu todo é apenas algo relativamente possível; é somente em correlação comigo, comigo enquanto penso ativamente, somente em correlação com o ato do meu pensamento responsável que tal sistema se incorpora na real arquitetônica do mundo vivido, como seu momento, se enraíza na sua real singularidade, significativa como valor. (BAKHTIN, 2010a, p. 118-120)
O ser ativo e participante entende que é parte do diálogo com outros seres e de forma ativa e criativa participa do mundo da vida e da cultura. Para Bakhtin, a arquitetônica só existe na relação com o ser no mundo da vida e em suas ações concretas na existência, pois é este que dá sentido à arquitetônica do mundo vivido. Este ser faz acontecer o ato utilizando seus valores e sua responsabilidade como ser único e historicamente situado.
Na obra escrita posteriormente (provavelmente entre os anos de 1923-24), “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, e publicado no Brasil como capítulo do livro Questões de literatura e estética (2010b), Bakhtin avança em sua reflexão ao apresentar o conceito de forma arquitetônica que são formas situadas: na arte nos “valores morais e físicos do homem estético”, na natureza “no seu ambiente”, na vida no “acontecimento no seu aspecto da vida particular, social, histórica e etc.”. (BAKHTIN, 2010b, p. 25). Se essas formas arquitetônicas estão na arte, na natureza e na vida, assim como a arquitetônica, elas se encontram na ética, na unidade da responsabilidade do ser, como pontuado no texto fundador Arte e responsabilidade.
As formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do acontecimento no seu aspecto da vida particular, social, histórica, etc.; todas elas são aquisições, realizações, não servem a nada, mas se auto-satisfazem tranquilamente, são as formas de existência estética na sua singularidade. (BAKHTIN, 2010b, p. 25).
Nessa obra, as reflexões sobre a criação estética são aprimoradas através dos estudos sobre o material. O conceito de arquitetônica aparece mais uma vez no ensaio quando Bakhtin diz que “é importante compreender justamente a originalidade do objeto estético, como tal, e a originalidade da ligação puramente estética dos seus elementos, ou seja, de sua arquitetônica” (BAKHTIN, 2010b, p. 54). Ele ressalta que a ligação puramente estética, porém, não deve ser entendida como formal como propõe os formalistas. Nesse ensaio, Bakhtin está em diálogo crítico com os formalistas russos. Ele compreende a obra de arte, principalmente na literatura que é o foco principal do texto, como um centro organizador de diversos fatores e estes são construtores desta arquitetônica. Os momentos arquitetônicos (eu-para-mim, outro-para-mim, eu-para-outro) são plenos de vida e determinados pelo sujeito do ato ético em diálogo com outros seres e outras visões de mundo. Neste ensaio, este é evidenciado pelo conceito de autor-criador da obra em relação aos outros do mundo e dos discursos que responderão futuramente ao que está sendo proposto nos momentos da arquitetônica. O ser não é mais apenas um ser. Ao ser nomeado, como um autor-criador, ganha a possibilidade de um contexto e um domínio ideológico. Ele não cria apenas para si. A criação de uma obra, seja ela qual for, é sempre para a apreciação de outrem, mesmo aquelas que nunca saíram da gaveta. O autor-criador enforma esteticamente e eticamente um enunciado artístico que é constituído por meio de uma mescla de suas visões individuais e de visões sociais diversas e externas de outros. Ele cria as personagens e narrativas em relação dialógica com esses discursos. Ainda que o conceito de relações dialógicas só apareça nas obras de Bakhtin quase quarenta anos depois, os ecos dialógicos dessa ideia se consolidam na reflexão sobre o autor-criador quando ele diz que
O autor criador é um momento constitutivo da forma artística. Eu devo experimentar a forma como minha relação axiológica ativa com o conteúdo, para prová-la esteticamente: é na forma e pela forma que canto, narro, represento, por meio da forma eu expresso meu amor, minha certeza, minha adesão. O conteúdo opõe-se à forma como algo passivo que precisa dela, algo receptivo, acolhedor, englobante, confiável, amável etc; logo que eu deixo de ser ativo na forma, o conteúdo que a forma aquietou e concluiu revolta-se e aparece na sua significação pura e ético-cognitiva, isto é, a contemplação estética termina e é substituída por uma empatia puramente ética ou por uma reflexão cognitiva, por um acordo ou desacordo teórico, uma aprovação ou uma desaprovação prática etc. (BAKHTIN, 2010b, p. 58).
Essa “enformação” é ativa e utiliza o conteúdo de forma passiva a partir da arquitetônica como parte desse processo que ao relacionar forma e conteúdo passa do meramente estético ao ético e ao dialógico. Isso fica ainda mais evidente no trecho: “a contemplação estética termina e é substituída por uma empatia puramente ética ou por uma reflexão cognitiva, por um acordo ou desacordo teórico, uma aprovação ou uma desaprovação” (BAKHTIN, 2010b, p. 58).
É nesse texto que o dialogismo na linguagem começa a aparecer cada vez mais nas reflexões de Bakhtin. A ideia inicial de que não existe um ato que não tenha responsabilidade e uma resposta passa a ser refletida como a não existência de um enunciado que não seja criado sem uma intenção ética e estética. O autor-criador ao criar um objeto estético o faz como resposta a outros enunciados anteriores e que poderá gerar respostas posteriores.
No ensaio, “O Problema do conteúdo”, o autor também apresenta a relação cada vez maior com os estudos da cultura, de sua análise do homem-sujeito e do autor-criador e suas relações no mundo ético e estético, por suas relações com a linguagem e o mundo social. Essas reflexões sobre o mundo da cultura como um campo de domínios ideológicos ganham novos tons nesse ensaio, relacionando a arquitetônica com as reflexões sobre dialogismo e as relações dialógicas:
Este ou aquele ponto de vista criador, possível ou realizado de fato, só se torna necessário e indispensável de modo convincente quando relacionado com outros pontos de vista criadores: só quando nas suas fronteiras nasce a necessidade absoluta desse ponto de vista, em sua singularidade criativa, é que ele encontra seu fundamento e sua justificação sólida. (BAKHTIN, 2010b, p. 29)
Esta ideia será sistematizada mais tarde no desenvolvimento da Metalinguística. Nesta nova proposta de disciplina, presente na obra sobre Dostoiévski dos anos 1960, um ponto de vista só tem pleno sentido em contraste com outros. É no contraste que as nuances ideológicas e lógicas ganham sentido. Esses pontos de vista, ainda que presentes no conteúdo, são expressos por meio das formas arquitetônicas que “são as formas dos valores morais e físicos do homem estético”. (BAKHTIN, 2010b, p. 25).
As considerações sobre arquitetônica deste período devem levar em conta também as reflexões contidas na obra seguinte, O autor e a personagem na atividade estética, escrita entre os anos de 1924 e 1927. Nessa obra, Bakhtin desenvolveu ainda mais profundamente conceitos elencados nos textos anteriores, com a compreensão da autoria na obra literária e as relações com o herói. O autor abre o ensaio com o conceito de arquitetônica e o relaciona com a questão da autoria. A conexão entre o autor e a personagem em sua obra literária auxiliou Bakhtin a continuar construindo suas reflexões da obra anterior onde o autor-criador já estava presente. Aqui, ele compreende que o autor tem uma relação arquitetônica com a personagem, estável e dinâmica. Ao criar uma personagem, dá voz e vida própria às personagens por meio dessa relação arquitetônica. Ainda que a personagem tenha vida própria na obra, é o autor que a enforma e dá vida a ela.
A relação arquitetonicamente estável e dinamicamente viva do autor com a personagem deve ser compreendida tanto em fundamento geral e de princípio quanto nas peculiaridades individuais de que ela se reveste nesse ou naquele autor, nessa ou naquela obra. [...] É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único e também semântico. Essa resposta total à personagem tem um caráter criador produtivo e de princípio. De modo geral toda relação de princípio é de natureza produtiva e criadora. O que na vida na cognição e no ato chamamos de objeto definido só adquire determinidade na nossa relação com ele: é nossa relação que define o objeto e sua estrutura e não o contrário [...] a resposta total, que cria o todo do objeto, realiza-se de forma ativa, mas não é vivida como algo determinado, sua determinidade reside justamente no produto que ela cria, isto é, no objeto enformado; o autor reflete a posição volitivo-emocional da personagem e não a sua própria posição em face à personagem (BAKHTIN, 2010c, p. 3-5).
A relação sujeito-objeto está presente na produção estética (que é também ética) da obra literária e relaciona o autor-criador à personagem no objeto estético, mas não de forma mecânica. A relação do sujeito que comanda o objeto acontece arquitetonicamente na obra literária e incorpora os valores axiológicos, construídos exteriormente e o tom emotivo-volitivo do autor-sujeito. Deste modo, ele relaciona a arquitetônica ao autor quando este é definido como o “agente da unidade tensamente ativa do todo acabado”.
Autor: é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, é este transgrediente a cada elemento particular desta. Na medida em que nos compenetramos da personagem, esse todo que a conclui não pode ser dado de dentro dela em termos de princípio e ela não pode viver dele nem por ele guiar-se em seus vivenciamentos e ações, esse todo lhe chega de cima para baixo - como um dom - de outra consciência ativa: da consciência criadora do autor. (BAKHTIN, 2010c, p. 10).
O autor rege o objeto estético e lhe dá o acabamento que não é apenas de ordem formal, mas principalmente de conteúdo. Desta maneira, ele torna-se o agente da arquitetônica da obra. Porém a obra estética será contemplada por outros agentes externos a essa relação autor personagem. Será respondida, refutada, criticada, tantos por questões de forma quanto de conteúdo.
No período entre 1924 e 1929, o grupo de pensadores amigos de Bakhtin volta a se reunir com maior assiduidade, porém, de volta para onde tudo começou: a cidade de Petrogrado que, a partir de 1924, passa a ser nomeada Leningrado. Nesse momento foram escritas importantes obras do grupo, mais tarde chamado Círculo de Bakhtin. As ditas obras disputadas do Círculo são relativas a este período em que se encontrava e nos interessam as seguintes obras:
  • O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica, obra de 1928, com a autoria de Pavel N. Medviédev.
  • Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da linguagem, com sua primeira edição publicada em 19293 com a autoria inicialmente atribuída a Mikhail Bakhtin e atualmente legada a Valentin N. Volóchinov.
  • Problemas da poética de Dostoiévski publicado originalmente em 1929 com o título, Problemas da obra de Dostoiévski, e republicado com a inclusão de trechos que geraram um novo capítulo e sob o título atual em 1963. A versão mais atual também apresenta a autoria de Mikhail Bakhtin, que contou com a ajuda de um grupo de jovens estudiosos do Instituto Górki para sua publicação. Há evidências de que a obra original começou a ser escrita em 1922 em paralelo ao projeto do livro de filosofia moral. No texto de 1929, ainda não estava presente a proposta de organização de uma nova disciplina, a Metalinguística e nem o conceito de relações dialógicas, ainda que a teoria dialógica da linguagem estivesse sendo construída.
As três obras, apesar de trazerem temas diferentes, possuem boa parte de sua base conceitual em comum, isto é, abordam de modo muito similar conceitos teóricos novos, que após esse período tornar-se-iam centrais na obra de Bakhtin e fundamentam as bases do Método Sociológico e mais tarde da Metalinguística. O Método Sociológico foi amplamente desenvolvido por Volóchinov na obra, Marxismo e Filosofia da Linguagem, mas também foi citado por Bakhtin em “O problema do conteúdo”, do material e da forma na criação literária ao tratar do problema do conteúdo. Isso evidencia a tese de que os textos dos pensadores do Círculo estavam sendo escritos no mesmo período por meio de densas discussões coletivas.
O método sociológico não só transcreve o acontecimento ético no seu aspecto social, já vivido e avaliado empaticamente na contemplação estética, mas também sai dos limites do objeto e introduz o acontecimento em ligações sociais e históricas mais amplas. (BAKHTIN, 2010b, p. 43).
Nesse trecho, Bakhtin parece desenhar o método que Volóchinov desenvolveu em Marxismo e Filosofia da linguagem de forma mais ampla. Aqui, ele está em embate crítico à pretensão de alguns círculos russos, em especial ao que ele chama de “Método formal ou Morfológico” referente ao grupo da OPOYAZ4 e do Círculo Linguístico de Moscou5. Para ele, o método formal mostrava-se “metodicamente impreciso” (BAKHTIN, 2010b, p. 15) em relação à “estética sistemático-filosófica geral” ao apresentar uma crítica estética não científica. A “primazia do material [...] isola as artes umas das outras” (BAKHTIN, 2010b, p. 17). É possível dizer que o Método sociológico é criado por Bakhtin em conjunto com Valentin Volóchinov a partir do embate com os grupos concorrentes de linha formalista. A pesquisadora bakhtiniana brasileira, Sheila Grillo (2017), evidencia que o Método Sociológico do Círculo buscava uma síntese das teorias de pensadores anteriores a ele. “Em MFL opera-se uma síntese dialética entre a filosofia neokantiana da linguagem de caráter idealista e a sociologia marxista, entre o subjetivismo individualista e objetivismo abstrato, entre o psíquico e o ideológico” (GRILLO, 2017, p. 52-53).
No segundo capítulo da primeira parte de Marxismo e filosofia da linguagem, Volóchinov, ao tratar da filosofia da linguagem, trava um debate com as teorias kantianas ao falar das categorias mecânicas (também mencionadas por Bakhtin no início do pequeno texto Arte e responsabilidade e em diversas partes de Para uma filosofia do ato responsável). Com isso, demonstra que a síntese realizada pelo Círculo, nesse momento de seu desenvolvimento teórico, apresenta em sua construção arquitetônica geral uma refutação às teses kantianas e suas categorias da causalidade mecânica, bem como ao aspecto material do método formal russo. Ele reforça o apoio nas ciências das ideologias marxistas de base materialista histórica ao pensar as esferas (ou campos) em relação direta com a teoria marxista sobre a base e as superestruturas ideológicas.
O domínio de aplicação das categorias da causalidade mecânica é extremamente restrito e nas próprias ciências da natureza torna-se cada vez mais limitado à medida que os seus princípios fundamentais são dialeticamente ampliados e aprofundados. A aplicação dessa categoria inerte é inadmissível no que diz respeito às questões básicas do materialismo histórico e de toda a ciência das ideologias. O estabelecimento da ligação entre a base e um fenômeno isolado, que foi retirado do contexto ideológico integral e unificado, não possui nenhum valor cognitivo. Primeiro, a importância de uma mudança ideológica deve ser definida no contexto da ideologia correspondente, considerando que qualquer área ideológica é uma totalidade que reage com toda a sua composição à alteração da base. Por isso a explicação deve preservar toda a diferença qualitativa dos campos em interação e observar todas as etapas que acompanham essa mudança. Apenas nessa condição o resultado da análise não será uma correspondência externa de dois fenômenos ocasionais e que se encontram em diferentes planos, mas um processo de formação dialética de uma sociedade real, que tem início na base e termina nas superestruturas. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 103-104, grifos do autor).
Volóchinov ressalta a importância da base econômica para o desenvolvimento das superestruturas ideológicas ou, como ele também nomeia nesse trecho, os campos. As mudanças (sociais, discursivas, funcionais, concretas) em cada campo ideológico são diretamente proporcionais às mudanças na base, isto é, na economia de uma dada sociedade. A ciência das ideologias deve perceber estas relações entre base (econômica) e as ideologias (esferas) ao propor um método sociológico.
Ao trazer a expressão “categorias da causalidade mecânica”, ele nos remete ao aspecto formal que o Círculo buscava refutar tanto da visão kantinana, quanto dos formalistas russos que não levavam em conta o contexto histórico e outros elementos que influenciam na construção da arquitetônica. Para Volóchinov, qualquer fenômeno de criação deve ser compreendido na interação social e na relação entre os campos ou domínios ideológicos, em diálogo com o contexto sócio-histórico que o permeia e ao campo ideológico a que pertence. Não é possível compreender o todo de qualquer fenômeno social (e comunicacional) e sua arquitetônica, sem compreender suas relações externas com o horizonte social mais amplo e com o campo ideológico. Deste modo, ele apresenta, no trecho supracitado, sua proposição em nítida resposta às reflexões feitas em outros textos do Círculo, principalmente no capítulo “O Problema do Conteúdo”, da obra O problema do Conteúdo do material e da forma na criação literária de Bakhtin.
Nessa obra, Volóchinov também demonstra que está preocupado com a construção dialógica da linguagem. Em diversas passagens utiliza o contraponto aos pensamentos do subjetivismo individualista e do objetivismo abstrato para construir o Método Sociológico. Desde o primeiro capítulo sobre o signo ideológico, trata de construir seu método por meio da concepção dialógica da linguagem. Todavia, é no capítulo intitulado “A interação discursiva”, que ele nitidamente traz a ideia do dialogismo.
A importância da orientação da palavra para o interlocutor é extremamente grande. Em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é igualmente determinada tanto de quem ela procede quanto para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto da inter-relação do falante com o ouvinte. Toda palavra expressa o “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela se apoia em uma das extremidades em mim e, na outra, no interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205).
Na obra, O Método formal nos estudos literários, Medviédev aproxima-se do texto, O problema do material do conteúdo e da forma na criação literária, de Bakhtin quando propõe uma análise crítica ao método formal russo. A proximidade de data de escrita das duas obras evidencia a autoria diferenciada de ambos6. A reflexão de Medviédev propõe logo na primeira página uma análise literária fundada na “ciência das ideologias”. Para ele, essa ciência tem seus fundamentos
[...] profunda e solidamente alicerçados no marxismo, que formulou uma definição geral das superestruturas ideológicas, de suas funções na unidade da vida social, de suas relações com a base econômica e, em parte, também na relação interna entre elas. No entanto, até hoje, o estudo detalhado das particularidades específicas, da peculiaridade qualitativa de cada campo da criação ideológica - ciência, arte, moral, religião - encontra-se ainda em estado embrionário. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 43).
Ao falar de um estudo sociológico necessário para pensar nos campos de criação ideológica, Medviédev remete seu diálogo diretamente às reflexões que Bakhtin fizera antes em O problema do material do conteúdo e da forma na criação literária e a Volóchinov em seu texto, Marxismo e Filosofia da linguagem, sobre o método sociológico.
Nos anos 1920, um dos maiores, se não o maior interesse do grupo, era construir um método sociológico, oposto ao método formal, que pudesse corporificar uma análise das criações ideológicas e principalmente da linguagem verbal literária, inspirado no materialismo histórico. Para Medviédev, esse método era uma ciência de base marxista e deveria compreender o objeto de análise em relação direta com os propósitos do campo, das superestruturas ideológicas, à base econômica e aos processos históricos e sociais.
O que falta é justamente um estudo sociológico elaborado sobre as particularidades específicas do material, das formas e dos propósitos de cada campo da criação ideológica. Com efeito, cada um desses campos, tem sua linguagem com suas formas e métodos suas leis específicas de refração ideológica da existência comum. Nivelar todas essas diferenças, desprezar a diversidade fundamental, é o que há de menos peculiar no marxismo. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 43-44).
Medviédev discute, ao longo de sua obra, de maneira direta sua crítica aos formalistas e assim compõe sua proposição de método sociológico especificamente para a análise literária. Para ele, “A forma linguística é somente real na apresentação discursiva concreta, no ato social do enunciado” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 186).
Ao falar do todo construído numa obra literária, que a organiza no tempo e no espaço em relação ao sentido, mais especificamente na poesia, nos remete diretamente à arquitetônica. O tempo, o espaço e o sentido organizam o todo do material. Essa criação tem autor e ele dá acabamento ético e estético à obra.
O seu objetivo é criar a impressão da unidade do material e da organização do corpo sonoro da totalidade. Essa totalidade é organizada no tempo real e no espaço real principalmente se for um gênero poético que exija apresentação em voz alta. O sentido com sua organização predomina sobre essa totalidade material, constrói-se, desenvolve-se em uma ligação ininterrupta com ela. Por isso é impossível compreender um sem o outro. Apenas na unidade da construção, o som como seu elemento torna-se um som poético, o sentido torna-se um sentido poético e sua relação torna-se não ocasional, mas construtiva. Na própria língua, tomada independentemente da organização, não há nada disso. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 161).
A arquitetônica de Medviédev pode ser pensada como a unidade de organização e construção do sentido no discurso que integra uma unidade cultural em seu material, forma e conteúdo por meio da ética e da estética. Essa arquitetônica é organizada pelo espaço, tempo e sentido, num evento único e histórico. O todo (arquitetônico) está contido na unidade resultante do sentido, isto é, a arquitetônica não é só forma, é também conteúdo. Medviédev nomeia o conceito de arquitetônica no capítulo intitulado “Tarefas construtivas da arte”. Para isso traz o diálogo com o filósofo da arte e escultor alemão Adolf Hildebrand em sua obra O problema da forma na arte figurativa (1914).
Aquilo que Hildebrand chama arquitetônico é na verdade, a unidade construtiva da obra. O próprio termo arquitetônico não foi mantido em virtude de se ligar ao nosso assunto por meio de associações estranhas. Como se expressa essa abordagem construtiva arquitetônica de uma obra de arte figurativa? Uma obra é um corpo espacial fechado. Ela é parte de um espaço real e está organizada como uma unidade justamente dentro dele. Como ponto de partida, deve-se tomar essa organização real da obra como uma totalidade autossignificante e construtiva. O gênero, o modo e as funções do conteúdo objetivo introduzido na construção de uma obra são determinados por esse lugar real, depois pela organização de suas partes e por aquelas funções que assume cada uma das partes e todo o corpo organizado no espaço real. Independente do significado imitativo, representativo ou outro, que possa receber um ou outro elemento da totalidade espacial, é necessário, antes de mais nada, definir o lugar no conjunto real e organizado de uma obra, isto é, o lugar de seu significado construtivo nos limites do espaço real. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 92-93).
Para Medviédev, a arquitetônica está ainda mais próxima do conteúdo, pois busca o sentido é justificado apenas na realidade e é ela que organiza o material, no tempo e espaço reais, num dado momento socio-histórico. A relação com o todo está ligada com o acabamento da obra, que se vincula à visão de mundo do autor em diálogo com os discursos sociais e do outro, como elemento constitutivo da interação social e da atividade criativa do autor. A avaliação social também é um fator importante na construção da arquitetônica, pois, como ele mesmo define, ela é “essa atualidade histórica que reúne a presença singular de um enunciado com a abrangência e a plenitude do seu sentido, que individualiza e concretiza o sentido e compreende a presença da palavra aqui e agora.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 184). A avaliação social é impregnada de vozes sociais, isto é, as vozes do outro, o dialogismo.
2 A metalinguística e a virada reflexiva bakhtiniana
Os escritos do Círculo no período dos anos 1920 se encerram com a análise de Bakhtin sobre a obra de Dostoiévski. Publicada inicialmente em 1929 com o título Problemas da Obra de Dostoiévski, em sua segunda versão de 1963 recebe o nome de Problemas da Poética de Dostoiévski e é onde encontramos o que podemos chamar de virada reflexiva de Bakhtin. A publicação da primeira versão deste livro ocorreu num momento muito complexo para os russos e extremamente difícil para Bakhtin.
O Círculo de Bakhtin, assim como aconteceu também a outros círculos intelectuais do período, foi dissolvido por conta do acirramento das perseguições causadas pelos expurgos stalinistas a partir de 1928. Os pensadores do Círculo, cada vez mais separados pela difícil conjuntura, seguem assim caminhos distintos. Bakhtin foi preso no início de 1929 e, alguns dias depois, seu livro sobre Dostoiévski foi publicado. Uma perinefrite complicou a doença já existente em suas pernas e por isso, em julho desse mesmo ano, foi transferido para um hospital. Após muitos interrogatórios, Bakhtin foi sentenciado a um exílio no Cazaquistão na cidade de Kustanai. (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 167-168) e com isso a obra não foi difundida como deveria e suas reflexões silenciadas por mais de três longas décadas. Em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin busca avançar em sua reflexão sobre o escritor russo. Nessa reescrita, cria novas nuances com bases mais consistentes para a teoria dialógica da linguagem, a disciplina que ele chama, a partir dessa nova publicação, de Metalinguística. Essa nova versão, feita em parceria com um grupo do Instituto Górki, lançou também o importante conceito de relações dialógicas. Nas três páginas iniciais do capítulo reescrito sobre o discurso de Dostoiévski, Bakhtin diz que as relações dialógicas “são objetos de estudo da metalinguística” (BAKHTIN, 2010d, p. 209). Pelos trechos abaixo é possível perceber como isso se remete à arquitetônica ao operar as relações e as categorias lógicas do discurso. Para ele, a “linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam” (BAKHTIN, 2010d, p. 208) e completa dizendo que “Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está impregnada de relações dialógicas”. (BAKHTIN, 2010d, p. 208). Desta forma, se toda a linguagem está impregnada dessas relações, para que a arquitetônica aconteça numa produção de sentido única, é necessário um “momento dialógico”. Assim o sentido é construído no todo e no diálogo (lógico) com o extralinguístico.
As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. A vida é boa. A vida não é boa. Estamos diante de dois juízos revestidos de determinada forma lógica e um conteúdo concreto-semântico (juízos filosóficos acerca do valor da vida) definido. Entre esses juízos há certa relação lógica: um é a negação do outro. Mas entre eles não há nem pode haver quaisquer relações dialógicas, eles não discutem absolutamente nada entre si (embora possam propiciar matéria concreta e fundamento lógico para a discussão). Esses dois juízos devem materializar-se para que possa surgir relação dialógica entre eles ou tratamento dialógico deles. Assim, esses dois juízos, como uma tese e uma antítese, podem unir-se num enunciado de um sujeito, que expresse a posição dialética deste em relação a um dado problema. Nesse caso não surgem relações dialógicas. Mas se esses dois juízos forem divididos entre dois diferentes enunciados de dois sujeitos diferentes, então surgirão entre eles relações dialógicas. [...] Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa. (BAKHTIN, 2010d, p. 209-210).
Ao tratar das relações dialógicas diz que estas são evidenciadas no relativo contraponto dos sentidos “um é a negação do outro” (BAKHTIN, 2010d, p. 209). Remetem a valores em contraste, anteriores, posteriores, a contextos e aos diferentes agentes em interação através de discursos na vida e na arte. As relações dialógicas estão presentes nas entrelinhas do discurso e ganham vida no ser em interação, no extralinguístico e cimentam a arquitetônica da obra ressaltando sua unicidade. “Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida” (BAKHTIN, 2010d, p. 96). É na materialização das relações lógicas e concreto-semânticas do discurso que a arquitetônica se revela, na construção do todo do enunciado prenhe de sentido.
Para ele, a Metalinguística estuda as relações dialógicas e deve ser compreendida como um estudo “daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam - de modo absolutamente legítimo - os limites da linguística”. (BAKHTIN, 2010d, p. 207) E continua:
As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a linguística e devem aplicar os seus resultados. A linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético - o discurso -, mas estudam sob diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente, e não se fundir. Na prática, os limites entre elas são violados com muita frequência. (BAKHTIN, 2010d, p. 207).
Deste modo, Bakhtin consolida esta nova disciplina, quase quarenta anos após o início de seus escritos filosóficos. Ao longo das páginas do capítulo sobre o discurso em Dostoiévski, trata das relações dialógicas e de como a Metalinguística auxiliará na compreensão dialógica (e lógica) da linguagem. É importante perceber que, as três páginas iniciais deste último capítulo do livro, introduzem tanto o conceito de relações dialógicas quanto a disciplina Metalinguística. Contudo o restante do capítulo apresenta apenas alguns ajustes textuais e reflexivos quando comparado com a primeira versão de 1929. O importante esquema sobre os tipos de discurso bivocal, por exemplo, já estava presente na publicação de 1929. Isso indica que as reflexões sobre a concepção dialógica da linguagem já existiam nos anos 1920 e também devem ser consideradas como embrionárias para o que seria mais tarde a disciplina Metalinguística.
Em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin trata do fenômeno da carnavalização da linguagem que também dá o tom em sua obra escrita nos anos 1940 sobre François Rabelais.
Já tivemos oportunidade de falar das particularidades da estrutura da imagem carnavalesca. Esta tende a abranger e a reunir os dois polos do processo de formação ou os dois membros da antítese: nascimento-morte, mocidade-velhice, alto-baixo, face-traseiro, elogio-impropério, afirmação-negação, trágico-cômico, etc. e o polo superior da imagem biunívoca reflete-se no plano inferior segundo o princípio das figuras das cartas do baralho. Isso pode ser expresso assim: os contrários se encontram, olham-se mutuamente, refletem-se um no outro, conhecem e compreendem um ao outro. (BAKHTIN, 2010d, p. 204).
É possível dizer que aqui o pensador russo busca preparar seu leitor para a reflexão sobre as relações dialógicas ao falar dos “dois membros da antítese”. Com isso, reforça a ideia de que discursos em interação sempre trazem contrastes entre tons, signos, referentes, e assim os sentidos são construídos por meio dessas nuances. A diferença entre discursos produz sentidos e faz com que estes se organizem. O todo coopera para que as antíteses evocadas no discurso recebam sentido não no sistema linguístico, mas na organização da comunicação extralinguística do mundo real. A arquitetônica, como organizadora de sentidos, também leva em conta esses contrastes em seus momentos arquitetônicos, nas relações lógicas e dialógicas que permitem a criação do enunciado.
No todo arquitetônico há também outros discursos anteriores, que colaboram na construção de um novo projeto de diálogo no futuro. Nos contrastes das relações dialógicas, a tensão transborda assim como nas relações do mundo da vida, refletem e refratam discursos e se consolidam nas esferas. As interações dos momentos arquitetônicos (eu-para-mim, outro-para-mim, eu-para-outro) amplificam vozes personificadas em um ato responsável, que toma forma em um enunciado concreto.
Em seu livro, Cultura popular da idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (2008), escrito ao que tudo indica nos anos 1940, busca completar o que podemos chamar uma proposta de filosofia da cultura iniciada em Para uma filosofia do ato responsável e continuada em O problema do material do conteúdo e da forma na criação literária. Fala sobre a cultura popular em contraste com a cultura oficial, do dialogismo e da construção de uma determinada cultura num determinado tempo histórico, por meio da reflexão sobre a cosmovisão carnavalesca realizada na versão de Problemas da Poética de Dostoiévski de 1963.
Neste nosso estudo sobre a arquitetônica e as relações dialógicas devemos perceber as relações antagônicas evidenciadas nessas obras. Primeiro temos a relação entre a cultura popular e a cultura oficial (reforçada nos períodos carnavalescos), ou como a cultura popular em alguns momentos da história da cultura busca mostrar o “mundo às avessas”. Esse antagonismo carnavalesco é criativo e arquitetônico. Bakhtin aponta que a visão carnavalesca na literatura medieval proporcionava a
[...] abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. Era um contato familiar e sem restrições, entre indivíduos que nenhuma distância separa mais. Como resultado, a nova forma de comunicação produziu novas formas linguísticas: gêneros inéditos, mudanças de sentido ou eliminação de certas formas desusadas, etc. (BAKHTIN, 2008, p. 14).
É importante notar que na carnavalização não apenas o mundo acontece às avessas e as hierarquias sociais não são as mesmas, mas também novas produções de sentido são permitidas e novos gêneros surgem por conta da ordem fora do padrão hegemônico. A cultura oficial que Bakhtin trata em Cultura popular da idade média e no renascimento: O Contexto de François Rabelais era específica do período medieval, porém pode ser entendida na história, como a cultura hegemônica das manifestações institucionais do Estado e também da elite cultural e econômica, que só aceitavam a produção cultural de base erudita, esteticamente complexa. De acordo com Bakhtin, para essa elite, só no período das festas carnavalescas era permitido o riso, o cômico, o grotesco e o contato com a praça pública. Fora desse período carnavalesco, este tipo de estética e o território público são legados apenas ao que se chama de cultura popular.
O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa “carnavalização” da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico. (BAKHTIN, 2008, p. 43).
A carnavalização para ele prepara as grandes transformações de valores sociais, éticos e estéticos, e traz a possibilidade do mundo projetado às avessas. Deste modo, a carnavalização possibilita uma compreensão do mundo a partir de novos olhares dialógicos e dialéticos, fora do padrão hegemônico estabelecido socialmente e, assim, novas arquitetônicas são criadas.
Conclusão
Neste estudo, apresentamos trechos e reflexões de importantes obras do chamado Círculo de Bakhtin a fim de demonstrar que os conceitos de arquitetônica, relações dialógicas e a criação da disciplina Metalinguística podem ser considerados como base no pensamento bakhtiniano.
Como vimos, o conceito de arquitetônica não é restrito a ele. Para Bakhtin, a arquitetônica é um conceito sistematizador superior que engloba todas as suas categorias filosóficas de compreensão de mundo. Deste modo, constrói e traz sentido à rede de conceitos-chave de sua teoria. Para ele, a arquitetônica é um centro organizador do sentido, que utiliza categorias de espaço, tempo e valores do ser historicamente situado e em interação com outros seres em ato.
Na análise das obras dos anos 1920, percebemos que conceitos como autor-criador, forma arquitetônica, forma, conteúdo e signo são chave para compreendermos a arquitetônica. Mas esses conceitos só fazem sentido em relação ao ser e aos momentos arquitetônicos que são intrinsecamente dialógicos. Da mesma maneira, a arquitetônica, no pensamento bakhtiniano, também pode ser vista no todo de um enunciado concreto criado na atividade estética ou num ato ético responsável, num momento histórico único e sempre em relação de interação com o outro, com o contexto e com a esfera ideológica, isto é, em interação. Assim é possível dizer que o dialogismo estava presente nas reflexões de Bakhtin desde o início, ainda que não denominado deste modo. Essa ideia esteve presente ao longo de diversas passagens e das obras de Bakhtin e permeou também as reflexões de outros pensadores do Círculo como Medviédev e Volóchinov, principalmente quando estes trataram da interação e a avaliação social.
Os mais de 30 anos de reflexão no exílio permitiram a Bakhtin observar, de modo extralocalizado, o todo de sua obra, e assim, arquitetonicamente, criar uma nova forma de analisar a linguagem no mundo da vida em diálogo com o mundo da cultura por meio da Metalinguística. É como se, na obra de Dostoiévski, Bakhtin buscasse dar um acabamento ao todo de sua reflexão, unindo a arquitetônica do ato ético, o método sociológico para assim criar a disciplina Metalinguística. E foi desta maneira que ele compreendeu a carnavalização, que pode ser entendida arquitetonicamente como um fator que amplia a liberdade e a criatividade estética (com responsabilidade ética) desse ser criador para a composição de um novo objeto estético, pois este não está mais totalmente determinado por valores da cultura hegemônica vigente num certo tempo histórico. E é a partir desses contrapontos sociais que novas possibilidades éticas e estéticas de arquitetônica podem surgir.
Ao observarmos a vida e a história tanto de Bakhtin quanto de outros pensadores do Círculo, podemos dizer que o pensamento e a obra do grupo poderiam ter tido outros rumos, caso os acontecimentos tivessem sido diferentes. A obra do Círculo e os escritos de seus pensadores aguardam respostas e acabamentos de outros pensadores. Neste breve estudo foi possível comprovar a importância dos conceitos de arquitetônica e relações dialógicas no todo da obra do Círculo, ambos complexos e que necessitam de outros conceitos para fazerem ainda mais sentido.
Resumo
Main Text
Introdução
1 O ato responsável e a construção do pensamento dialógico
2 A metalinguística e a virada reflexiva bakhtiniana
Conclusão
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