Thu, 11 Mar 2021 in Linha D'Água
ENCONTRO NO SUBSOLO: DOSTOIÉVSKI, KAFKA E BAKHTIN
Resumo
Em Memórias do subsolo, escrita por Dostoiévski em 1864, emerge a confissão das incertezas e contradições de um homem. Kafka, n’A construção (1923), opta pelo discurso do protagonista dirigido e elaborado sob a influência antecipável do outro. Propõe-se, neste trabalho, a acompanhar as duas narrativas a partir de ideias e conceitos bakhtinianos presentes em Problemas da Poética de Dostoiévski (PPD), a saber: homem no homem, tom confessional, diálogo interior, autoconsciência dialogizada, polêmica velada e aberta, discurso com evasivas, consciência e alteridade. Objetiva-se, portanto, analisar, a partir da organização teórica e metodológica esboçada em PPD, alguns dos graus e formas de incorporação da palavra do outro nas duas novelas, de modo a acompanhar o relato e a confissão de duas personagens que vivem no subsolo, privadas de reconhecimento e interação, em um espaço de ausência e silêncio.
Main Text
Introdução
Em Memórias do subsolo, escrita em 1864, novela que antecede os grandes romances de Dostoiévski (1821-1881), importa - de suas contradições, incertezas, degradações, crueldades e dores - a confissão do homem do subsolo cujo discurso é preparado para o seu interlocutor, de forma a evocar e antecipar discursos alheios. A novela, dividida em duas partes - “O subsolo” e “A propósito da neve molhada” -, ficou estruturada, como mostrou Bakhtin, “sobre uma confissão que se constrói na expectativa da palavra do outro” (SCHNAIDERMAN, 2009, p. 8).
Em A construção, um dos últimos textos de Kafka (1883-1924), o discurso do animal do subsolo, em tom confessional, é dirigido e elaborado sob a influência antecipável do outro, com o qual polemiza: “quem pensa que eu sou covarde ou que edifico minha construção por covardia me desconhece”(KAFKA, 1998, p. 63). Escrita no inverno de 1923, em Berlim, meses antes de ser internado no sanatório de Kierling, é, segundo alguns críticos, a exemplo de Modesto Carone, um relato autobiográfico escrito em seus últimos meses de vida, “em circunstância histórica e pessoal sombria - ameaçado por fora pelo nazismo e por dentro pela doença” (CARONE, 2009, p. 27).
Dostoiévski vive e escreve no século XIX em uma São Petersburgo marcada por profundas transformações. Erguida, conforme verifica Schnaiderman, “sobre um terreno pantanoso, cortada pelo rio Nievá e seu afluente Móika e por inúmeros canais, ela aparece majestosa e solene, com seus palácios e pontes monumentais”, uma “cidade cuja própria existência tem algo de fantástico e inverossímil” ([orelha], SCHNAIDERMAN, 2009a). É apresentada em Memórias como “a cidade mais abstrata e meditativa de todo globo terrestre”(DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 18). A relação do homem do subsolo com Petersburgo é conflituosa: por um lado, sente “a infelicidade de habitar Petersburgo”; por outro, assevera que “ficar[á] em Petersburgo; não deixar[á] esta cidade!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 18).
Em 1849, Dostoiévski, acusado de conspirar contra o czar, é condenado e enviado para a Sibéria, onde viveu durante nove anos. Dostoiévski retorna à cidade de São Petersburgo no momento da reconstrução da nova cidade em que as classes menos favorecidas foram excluídas. É, portanto, este cenário de contradições ideológicas, sociais e econômicas que Dostoiévski traz à tona:
A própria época tornou possível o romance polifônico. Dostoiévski foi subjetivamente um partícipe dessa contraditória multiplicidade de planos do seu tempo, mudou de estância, passou de uma a outra e nesse sentido os planos que existiam na vida social objetiva eram para ele etapas da sua trajetória vital e sua formação espiritual. Essa experiência individual era profunda, mas Dostoiévski não lhe atribuiu expressão monológica imediata em sua obra. Essa experiência apenas ajudou a entender com mais profundidade as amplas contradições que existem extensivamente entre os homens, e não entre as ideias numa consciência (BAKTHIN, 2013, p. 30-31).
Kafka, por sua vez, vive entre dois séculos. Sua literatura, produzida no início do século XX, constrói-se sob um paradigma de sujeito gerado na relação entre a sociedade tradicional e a modernidade. Suas narrativas evidenciam “a desestruturação dos sistemas de valores vigentes em função de toda uma nova axiologia moderna” (CAVALHEIRO, 2010, p. 19). Surge, nesse contexto, a essência para o adjetivo kafkiano, que passa a evidenciar certas transformações das sociedades europeias na virada do século XIX para o XX. O que Kafka retrata é “uma visão não muito favorável do que significa para o homem comum viver nessa configuração social marcada pela presença de duas características basilares, a desumanização e a alienação” (SAMPAIO NETO, 2016, p. 29). Raros são os autores cujos nomes servem como raiz de adjetivos que significam para além do que vai neles escrito, bem como de quem o escreveu. Franz Kafka, por sua obra, imprimiu um kafkiano para além das margens literárias que transcendem seus livros. A multiplicidade de significados para kafkiano constitui o alicerce da singularidade de Kafka.
As duas personagens - o homem do subsolo, protagonista de Memórias do subsolo, e o animal do subsolo, protagonista de A construção - travam um diálogo interminável com suas (auto)consciências. As personagens constroem-se no embate com a palavra do outro, polemizando com as ideias vigentes de seus tempos. Uma das inovações de Dostoiévski foi a de criar “pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 2013, p. 4). Kafka também soube retratar a fundo a vida do homem comum, visto através de lentes que o focam em sua distorção, como no caso de Gregor Samsa, que se vê metamorfoseado em si mesmo. Dostoiévski e Kafka ombreiam como exímios conhecedores da (auto)consciência humana.
1 A propósito da polifonia: experimentação do homem no homem
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (1895-1975) volta a discutir a função autor1, mas agora circunscrita à obra de Dostoiévski2. O crítico, ao verificar que várias vozes falam simultaneamente no romance do grande escritor russo do século XIX, sem que nenhuma dentre elas seja preponderante, defende a tese de que as personagens dostoievskianas possuem uma independência interior em relação ao autor-criador, impossibilitando, desta forma, a conclusibilidade delas. Ocupa-se, deste modo, de um problema de estrutura, ou seja, dos procedimentos formais que permitem a Dostoiévski levar cada uma das personagens a falar em voz própria, com um mínimo de interferência do autor-criador, cujo efeito é o de criar um novo gênero, qual seja: o romance polifônico.
Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor (...). Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 2013, p. 5, grifo do autor)
Bakhtin denomina como polifônico o romance de Dostoiévski, na medida em que nele vozes e consciências independentes se cruzam, se opõem e se confundem, criando harmonias e dissonâncias, sem que haja sobreposição de uma por outra, ou seja, todas elas mantêm com as outras vozes uma relação de igualdade, como participantes do grande diálogo, entre as quais se inclui a do próprio autor-criador: “é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes3e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade.” (BAKHTIN, 2013, p. 5, grifo do autor). Do ponto de vista da análise realizada por Bakhtin, Dostoiévski não exerce domínio sobre suas personagens, de modo a fazer delas meros objetos de sua criação. Ele respeita, “em pé de igualdade”, sua natureza de sujeitos, tratando-as como “vozes e consciências autônomas”.
As personagens de Dostoiévski têm pontos de vista sobre o mundo e sobre si mesmas e, pela expressão desses pontos de vista no diálogo, adquirem autoconsciência, constituindo a subjetividade através da tomada de consciência. A consciência e a voz do autor-criador não deixam de ser ativas, mas não no sentido de transformar a consciência das personagens em objetos nem de fazer delas definições acabadas. A consciência do autor-criador “sente ao seu lado e diante de si as consciências equipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusas quanto ela mesma” (BAKHTIN, 2013, p. 77).
No universo literário de Dostoiévski, a relação entre autor-criador e personagem - embora continue supervisionada pelo olhar extraposto do autor-criador como elemento formal - sofre profundas transformações: a personagem adquire um caráter dialógico que afirma sua autonomia e o seu acabamento. Em outras palavras, o autor-criador, nesta nova posição, não deixa de ser o elemento formal constitutivo da obra, mas, ao invés de propiciar o acabamento estético da personagem, passa a dialogar com a personagem como um “tu” plenivalente, ou seja, o autor-criador não apenas fala da personagem, mas com a personagem (BAKHTIN, 2013, p. 71-2).
A personagem, ao manter com outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade, participa do diálogo não como um ele ausente, mas como um tu pleno de valor (BAKHTIN, 2013, p. 73). Essa autonomia da personagem é criada pelo autor-criador, interrogando-a e provocando-a, sem, contudo, fazer dela uma imagem predeterminada ou conclusiva (BAKHTIN, 2013, p. 75). Esse excedente de visão e compreensão é utilizado não para “reificar e concluir” a personagem, mas sim, trata-se de um “excedente aberto e honesto, que se revela dialogicamente ao outro, um excedente que se exprime em discurso voltado para alguém, e não à revelia” (BAKHTIN, 2013, p. 336).
Assim, a personagem toma consciência de si através do diálogo travado com outras consciências isônomas e plenivalentes, embora com uma autonomia relativa, pois se situa no plano do autor-criador, presença indispensável na construção do objeto estético. Ressalve-se, porém, que “o único que pode ser portador da ideia plenivalente é o ‘homem no homem’, com sua livre falta de acabamento e solução (...).” (BAKHTIN, 2013, p. 96). Deste modo, “só o inacabado e inexaurível ‘homem no homem’ poderia ser homem de ideia, cuja imagem se combinaria com a imagem da ideia plenivalente” (BAKHTIN, 2013, p. 96). É, portanto, na ideia que reside a autenticidade e o inacabamento das personagens. Esta é, pois, segundo Bakhtin, a primeira condição da representação da ideia em Dostoiévski. A segunda é a de sua existência estar condicionada às ideias dos outros:
A ideia, como a considerava Dostoiévski-artista, não é uma formação psicológica-individual subjetiva com ‘sede permanente’ na cabeça do homem; não, a ideia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua existência não é a consciência individual, mas a comunicação dialogada entre as consciências (BAKHTIN, 2013, p. 98, grifo do autor).
Acompanharemos, durante as análises das duas novelas, as tensas relações dialógicas do homem do subsolo e do animal do subsolo travadas entre a consciência do outro e a tomada de consciência das personagens.
2 Ressonâncias do subsolo: um espaço de ausência e silêncio
Em A construção, um animal inominado conjuga o plano, o relato e o posfácio de uma habitação subterrânea, narrada por alguém sobre a qual repousa o temor de uma invasão iminente. A ação decorre dentro dos limites de um espaço mínimo, adjetivado como frágil: “Ausculto agora as paredes da praça e, onde quer que ouça, no alto e embaixo, nas paredes ou no chão, nas entradas ou no interior, por toda parte o mesmo ruído” (KAFKA, 1998, p. 92). O animal do subsolo confessa que seu projeto começou com a construção de “um completo intrincado de corredores”. Logo surgiu, para sua alegria, uma construção labiríntica (KAFKA, 1998, p. 71). O espaço para a construção de seu projeto deu-se de modo, até certo ponto, planejado:
E o que outra coisa além disso é o sentido das belas horas que, ora dormindo em paz, ora acordando alegre, costumo passar nos corredores - nestes corredores calculados exatamente para mim, para o espreguiçar confortável (...) E tudo, tudo silencioso e vazio. (KAFKA, 1998, p. 83)
De fato, do que o animal do subsolo mais se regozija é da manutenção do silêncio e o que mais teme é a invasão de ruídos outros a interromper-lhe esse estado: “a coisa mais bela da minha construção é o seu silêncio. Certamente ele é enganoso” (KAFKA, 1998, p. 66).
Enquanto o animal do subsolo teme um semelhante4 - “talvez seja, o que não é menos ruim - em mais de um sentido é o pior de tudo -, talvez seja alguém da minha espécie, um conhecedor e apreciador de construções” (KAFKA, 1998, p. 78-79) -, o homem do subsolo deseja um encontro com um semelhante seu. Mais que isso, busca incansavelmente romper o silêncio da interação.
Se, por um lado, o convívio com o outro é algo que o homem do subsolo busca a cada polêmica: “Em tudo ele percebe antes de mais nada a vontade do outro, que predetermina a sua”(BAKHTIN, 2013, p. 273, grifo do autor); por outro, o animal do subsolo rechaça toda e qualquer interação presencial, pois o outro é-lhe um perigo iminente. Todavia, em ambos os discursos há uma constante dialogação interior sobre o que pensam e falam: persuadem-se a si mesmos, riem de si mesmos, projetam-se no espaço da consciência do outro.
Na confissão do homem do subsolo, a dialogação interior, como observada pela análise realizada por Bakhtin, está presente do início ao fim da novela de Dostoiévski. Seu tom e discurso mudam por influência da palavra antecipável do outro, com o qual entra em polêmica interior, inicialmente, de forma velada, entendida como “uma modalidade discursiva que se desdobra no discurso interior, mas não é vocalizado: parte do exterior, mas ressoa na mente do personagem” (BRAIT; MACHADO, 2011, p. 33).
Essa polêmica pode ser verificada, por exemplo, no depoimento expresso na primeira linha da novela: “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. (...)” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15). Inicia, assim, sua confissão com uma queixa: “Sou um homem doente...”. É como se antecipasse qualquer reação de compaixão do outro. Mas, logo após às reticências, muda o tom: de doente passa a ser “Um homem mau. Um homem desagradável” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15). É, portanto, “característica a gradação do tom negativo (para contrair o outro) sob a influência da reação antecipável do outro” (BAKHTIN, 2013, p. 263).
Ainda no primeiro parágrafo, de polêmica interior velada, o homem do subsolo irrompe numa polêmica aberta, ou seja, “a réplica antecipável do outro se insere na narração” (BAKHTIN, 2013, p. 264) - conforme Dostoiévski, “Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15).
O tom confessional do homem do subsolo, marcado, portanto, por um intenso diálogo interior, alterna sentimentos, como, por exemplo, os de compaixão e rancor: “Sou um homem doente... Um homem mau” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15). Na sequência, continua a confessar no que reside esta oscilação de sentimentos:
O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 16, grifo nosso)
Em polêmica ainda mais acentuada, intensifica-se a consciência que o homem do subsolo possui. É ela que está impregnada em seu ser, por mais que quisesse deixar de tê-la: “Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 18).
Na primeira parte da novela de Dostoiévski, a alternância de sentimentos, expressa pelas polêmicas travadas pelo homem do subsolo, continua a ser uma constante. Por um lado, sente prazer de ter consciência de sua própria degradação: “o prazer provinha justamente da consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria degradação” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 20), de modo a não conseguir tornar-se nem inseto, nem bom nem mal, ou seja, nada. Por outro lado, a consciência de sentir-se o mais inteligente de seu círculo perturbava-o ainda mais, pois sabia que um homem que vivia no século XIX, se fosse inteligente, não poderia vir a ser nada de sério: “O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 50). Entretanto, na sequência, confessa: “o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo algum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 51).
A repetição das palavras, em tom confessional, é muito recorrente nas duas novelas, a qual se deve o empenho de reforçar a aceitabilidade ou dar um novo sentido. Tendo em vista uma possível reação do interlocutor, o animal do subsolo confessa: “durante toda a construção, perdurou na minha consciência (...) a exigência de várias praças, eu não cedi a ela, sentia-me fraco demais para o mister gigantesco; sim, eu me sentia fraco demais para me dar conta da necessidade do trabalho” (KAFKA, 1998, p. 70, grifo nosso).
O animal do subsolo, ao relembrar de sua construção, observa que talvez fosse necessário reconstruir sua saída, pois no lugar destinado a ela construiu um intrincado de corredores. Naquela época, começou a traçar os primeiros passos de seu projeto de forma meio lúdica e “assim se desencadeou lá a primeira alegria do trabalho numa construção labiríntica” (KAFKA, 1998, p. 71). Lembra ainda de ter dito, “ironicamente, aos inimigos invisíveis”, que naquele lugar seria sua entrada para a casa. Além disso, ainda pôde ver, naqueles inícios de construção, todos os inimigos “sufocarem no labirinto” (KAFKA, 1998, p. 72).
No início de sua construção, portanto, ainda era capaz de ver seu inimigo perdido entre tantas saídas, sentia-se forte, imbatível diante de todos, somente sua construção poderia lhe salvar de todos os males exteriores e interiores:
Sua casa está protegida, fechada em si mesma. Você vive em paz, aquecido, bem alimentado, único senhor de um sem-número de corredores e recintos - e é de esperar que deseja não só sacrificar, mas em certa medida abandonar tudo? (...) Existiriam motivos racionais para tanto? Não, para algo dessa natureza não pode haver motivos racionais. (KAFKA, 1998, p 74)
No entanto, ao perceber que não há mais como reconstruir tudo - porque isso “significaria chamar quase voluntariamente a atenção do mundo para toda a construção, o que não é mais possível” (KAFKA, 1998, p. 72) -, confessa a si mesmo e ao seu interlocutor as fraquezas/limitações de seu projeto, fazendo com que o outro aceite a sua construção, mesmo com as limitações/lacunas por ele observadas. Toda a vida interior do animal da construção desenvolve-se dialogicamente, dirige-se a um outro, seja em polêmica interior velada, seja em polêmica aberta. Como observa Bakhtin,
A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas ideias. (BAKHTIN, 2013, p. 98, grifo do autor)
É, pois, “no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce e vive a ideia” (BAKHTIN, 2013, p. 98). Temos, por um lado, uma tensa relação com a consciência do outro; por outro, uma tensa relação dialógica consigo.
3 A propósito da relação dialógica de si mesmo: mobile do continuum infinito
Passamos, agora, para a análise da relação dialógica consigo mesmo. Iniciaremos pela antecipação das réplicas dos outros. Esse recurso, de acordo com Bakhtin, é utilizado para garantir a afirmação e o reconhecimento do outro:
Graças a essa relação com a consciência do outro obtém-se um original perpetuum mobile da polêmica interior do herói com o outro e consigo mesmo, um diálogo sem fim no qual uma réplica gera outra, a outra gera uma terceira em movimento perpétuo, e tudo isso sem qualquer avanço (BAKHTIN, 2013, p. 266).
Tanto o animal do subsolo quanto o homem do subsolo, ao terem consciência do outro e, assim, para garantir seu espaço de fala, usam como estratégia um movimento perpétuo de réplicas, de modo a formular e antecipar a resposta do outro. Vejamos uma passagem de cada novela:
Ele está migrando ou trabalhando na própria construção? Se estiver no curso de uma migração, então será possível um entendimento com ele. Se rompe caminho na minha direção, dou-lhe um pouco das minhas provisões e ele segue viagem. Muito bem, é o que ele faz. (KAFKA, 1998, p. 106)
- Mas não é uma vergonha, não é uma humilhação?! - talvez me digais, balançando com desdém a cabeça. - Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma absurdos e se satisfaz com eles, diz insolências, mas sempre se assusta com elas e pede desculpas. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 51)
As personagens, ao preencherem as respostas do outro, atestam seu espaço de fala, isto é, sua presença, mas o fazem com, no mínimo, dois propósitos:
- o de destruir sua própria imagem no outro, pois procuram “destruir em si qualquer vontade de parecer herói aos olhos dos outros (e aos próprios)”(BAKHTIN, 2013, p. 268). Temos, neste caso, o homem do subsolo, em tom confessional: - “Para vós, eu já não sou o herói, que anteriormente quis parecer, mas simplesmente um homem ruizinho, um chenapan” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 27); e o animal do subsolo: “Balanço a cabeça, não disponho de nenhuma solução. Também não vou à praça do castelo para lá executar algum projeto” (KAFKA, 1998, p. 105).
- o de impedir que o outro torne-se real, pois o outro é-lhe necessário apenas para travar sua polêmica interior: “A voz humana real, assim como a réplica antecipável do outro, não podem dar por acabado o seu interminável diálogo interior” (BAKHTIN, 2013, p. 295). Para o animal do subsolo, que somente se preocupa com a construção, o outro real ou invisível somente pode entrar em seu mundo como outro com o qual trava sua polêmica. Já para o homem do subsolo, há uma desesperada tentativa em se libertar “do poder exercido sobre ele pela consciência do outro e abrir em direção a si mesmo o caminho para si mesmo” (BAKHTIN, 2013, 268).
O discurso do homem do subsolo sobre si mesmo é tanto um discurso com mirada em torno quanto um discurso com evasivas. O primeiro é entendido como uma espécie de diálogo velado, como se nesse “estivesse encravada a réplica do outro” (BAKHTIN, 2013, p. 239). Nessas ocorrências,
a atitude do herói em face a si mesmo é inseparável da atitude do outro em relação a ele. A consciência de si mesmo fá-lo sentir-se constantemente no fundo da consciência que o outro tem dele, o “eu para si” no fundo do “eu para o outro”. (BAKHTIN, 2013, p. 237)
A personagem, através dessa mirada, define-se e compreende-se a si e ao mundo no e pelo olhar do outro. Já a influência da evasiva aponta para um outro momento: para uma concepção presente de si, mas de modo condicional.
A evasiva torna o herói ambíguo e imperceptível para si mesmo. Para abrir caminho em sua própria direção, ele deve percorrer um imenso caminho. A evasiva deforma profundamente sua atitude em face de si mesmo. O herói não sabe de quem é a opinião, de quem é a afirmação, enfim, seu juízo definitivo: não sabe se é a própria opinião, arrependida e condenatória, ou, ao contrário, a opinião do outro por ele desejada e forçada, que o aceita e o absolve. (BAKHTIN, 2013, p. 271)
O homem do subsolo, ao esperar que o outro lhe conteste, “deixa uma evasiva para o caso de o outro concordar de repente com ele, com a sua autodefinição, com a sua autocondenação, e não usar do seu privilégio de outro” (BAKHTIN, 2013, p. 270). Um momento alto desse discurso com evasivas ocorre no último capítulo da primeira parte de Memórias do subsolo, momento em que disserta sobre o processo de escrita de sua confissão:
Bem, por exemplo, alguém poderia implicar com essas palavras e me perguntar: se de fato não conta com leitores, para que faz tais contratos consigo mesmo, e ainda por escrito, no sentido de que não instaurará uma ordem ou um sistema, que há de anotar tudo o que lhe vier à memória etc. etc.? Para que está dando explicações? Para que se desculpa? (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 53)
Dostoiévski, conforme a análise feita por Bakhtin, “cria um tipo especial de última palavra fictícia sobre si mesma com tom aberto”(BAKHTIN, 2013, p. 271), de modo à personagem ter “a possiblidade de mudar o sentido último e definitivo do seu discurso (...). Esse possível “outro” sentido, isto é, a evasiva deixada, acompanha como uma sombra a palavra” (BAKHTIN, 2013, p. 269).
Essa sombra presente à/na palavra, como consequência do discurso com evasivas, configura a atitude ambígua da personagem e de sua visão distorcida, de modo a tornar instáveis as autodefinições da personagem, na medida em que o sentido é processo que não cessa. Mais que isso: “O discurso com evasivas se apresenta como o mobile do continuum infinito que evoca a visão degradada que o homem do subsolo constrói de si e do mundo” (BRAIT; MACHADO, 2011, p. 34). O homem do subsolo “não figura como um homem inserido na vida, mas como sujeito da consciência e do sonho” (BAKHTIN, 2013, p. 57). Em toda a confissão, “procura antecipar-se a uma possível definição e apreciação de si por outros, vaticinar o sentido e o tom dessa apreciação” (BAKHTIN, 2013, p. 59). É conhecedor de “todas as possíveis refrações da sua imagem”, vistas através das consciências dos outros. O dominante da imagem do homem do subsolo é a autoconsciência, e o acontecimento fundamental é a interação de consciências isônomas (BAKHTIN, 2013, p. 83). A visão do autor, portanto, “está voltada precisamente para a autoconsciência e para a irremediável inconclusibilidade, a precária infinitude dessa autoconsciência” (BAKHTIN, 2013, p. 57).
As vidas reais5 do animal do subsolo e do homem do subsolo são impermeáveis a interferências de quaisquer semelhantes, sejam animais para a personagem de Kafka, sejam humanas para a de Dostoiévski. Para o animal do subsolo, em toda a novela, não há contato direto com nenhuma outra personagem, ele apenas escuta zumbidos que “não pode[m] ser tomado[s] por murmúrio”(KAFKA, 1998, p. 100). O outro real para ele significaria seu fim. Para o homem do subsolo, o outro real somente pode entrar no seu mundo como outro com o qual trava sua polêmica interior, pois não há como suportar a compaixão e aceitação do outro real. Isso fica evidente no momento que Liza vai à sua casa e o encontra como ele realmente é:
Nestes três dias, tremi de medo que você viesse. E sabe o que me inquietou, de modo particular, em todos estes três dias? Foi que então eu me apresentei tão heroico diante de você, e de repente você me veria indigente, repulsivo, com este roupãozinho esfrangalhado. Eu lhe disse, há pouco, que não me envergonhava da minha pobreza; pois saiba que me envergonho, sim, envergonho-me disso mais do que qualquer outra coisa; (...). E também nunca desculparei a você as confissões que lhe estou fazendo agora! (...). Que mais você quer? E por que, depois de tudo isto, você fica aí espetada na minha frente, por que me tortura e não vai embora? (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 138-139).
Não há, portanto, para o homem do subsolo, espaço para o outro real: “A voz humana real, assim como a réplica antecipável do outro, não podem dar por acabado o seu interminável diálogo interior” (BAKHTIN, 2013, p. 295).
Considerações finais
À guisa de conclusão, trazemos alguns indícios de resposta à questão motora deste estudo. Como a alteridade interfere na compreensão do homem e do animal do subsolo?
Há um estreito parentesco que une as obras de Dostoiévski às de Kafka: entre uma e outra, identificamos os narradores-personagens, que, em tom confessional agressivo e polêmico, torturam-se conscientes de suas faltas. O homem do subsolo e o animal do subsolo convergem para o mesmo “‘lugar retórico’ dos labirintos interiores” ([orelha], COSTA PINTO, 2009). Podemos uni-los, pois, em uma mesma linhagem literária, identificada, neste estudo, através de seu sobrenome: do subsolo6.
Dostoiévski e Kafka têm consciência do caráter trágico de se viver em um subsolo. Para o homem do subsolo, como representação satírica da intelectualidade russa, mas sobretudo por sua solitária consciência de viver num eterno subsolo aos olhos dos outros: “silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. (...) Fui tratado como uma mosca.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 62-63). Para o animal do subsolo, não apenas devido à fragilidade de sua obra, mas como consequência dos impasses de seu tempo:
Justamente por ser possuidor desta grande obra suscetível é que eu permaneci inerme contra qualquer ataque mais sério. A felicidade da posse me estragou, a vulnerabilidade da construção me tornou vulnerável, os ferimentos dela me doeram como se fossem meus. Eu precisaria ter antecipado isso e, ao invés de ficar cogitando da minha própria defesa - como fiz superficialmente e sem resultado -, deveria ter pensado na defesa da construção. (KAFKA, 1998, p. 102)
A capacidade de ter consciência está baseada no outro - segundo a ideia de dialogismo desenvolvida por Bakhtin, a partir da qual houve de se verificar a presença dessa ideia nas obras pesquisadas. A ênfase está, todavia, “no discurso e na personagem como sujeito consciente de seu próprio discurso” ([prefácio], BEZERRA, 2013, p. XIII). A dimensão da alteridade situa-se, portanto, não apenas no lugar que a figura do outro - os inimigos invisíveis para o animal do subsolo; o chefe, o oficial, os supostos amigos ou a prostituta Liza para o homem do subsolo - ocupa no processo interativo, mas acima de tudo na consciência, acionada através da consciência que vai tendo de si. Afinal, como bem sintetizou Bakhtin a propósito da análise empreendida nas obras de Dostoiévski: “A consciência é muito mais terrível que quaisquer complexos inconscientes” (BAKHTIN, 2013, p. 324).
A consciência de si, portanto, só é possível ao se revelar ao outro, através do outro e com o auxílio do outro. Dostoiévski, em Memórias do subsolo, e Kafka, em A construção, através da confissão do homem do subsolo e do relato do animal do subsolo, mostram como “a interdependência das consciências” lhes revela que “Ser significa conviver”. Não há como ser eu sem a identificação do outro, “não posso me tornar eu mesmo sem o outro”. Entretanto, “a justificativa não pode ser autojustificativa, o reconhecimento não pode ser autorreconhecimento” (BAKHTIN, 2013, p. 322-333), pois, “para um solitário, sua própria voz se torna instável, sua própria unidade e sua concordância interior consigo mesmo se tornam um postulado” (BAKHTIN, 2013, p. 317).
É, deste modo, que a autoconsciência do homem do subsolo e do animal do subsolo penetram a consciência que os outros têm deles. Em suas enunciações está implicada a palavra sobre si mesma e sobre seus mundos, obtendo, assim, “um original perpetuum mobile da polêmica interior”, ou seja, “um diálogo sem fim no qual uma réplica gera outra, a outra gera uma terceira em movimento perpétuo, e tudo isso sem qualquer avanço” (BAKHTIN, 2013, p. 266).
Resumo
Main Text
Introdução
1 A propósito da polifonia: experimentação do homem no homem
2 Ressonâncias do subsolo: um espaço de ausência e silêncio
3 A propósito da relação dialógica de si mesmo: mobile do continuum infinito
Considerações finais