RESENHA
O olhar e a cena - Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues.
Paula Leocádia Pinheiro Custódio (USP)
Capítulo I – Cinema: revelação e engano
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena – Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

O livro – O olhar e a Cena – de Ismail Xavier reúne textos publicados em ocasiões distintas e com variados propósitos. Como bem destaca o texto introdutório, Xavier dará particular relevância à concepção da cena tal como formulada desde o século XVIII, quando emergiu o drama sério burguês e a hipótese de “quarta parede” foi assumida para valer nos palcos. Dado o desenvolvimento temporal da imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza – o movimento, a celebração do “realismo” no cinema é muito mais intensa em relação às outras formas de representação – fotográfica, teatral. O aumento do coeficiente de fidelidade e o enorme poder de ilusão estabelecidas graças a esta reprodução do movimento dos objetos suscitaram reações imediatas e reflexões detidas ao longo da história. A leitura dos filmes se insere, segundo Xavier, portanto, num horizonte histórico. De modo geral, seus escritos focam a passagem do teatro e da literatura ao cinema num sentido amplo que ultrapassa o caso da adaptação, e revelam a forma como operam, na indústria cultural do século XX, gêneros como o melodrama e uma geometria do olhar e da cena que não se iniciou com o cinema, mas encontrou nele um enorme poder na composição do drama como experiência visual. Há variadas formas dessa geometria e de seus componentes (teleficção, telejornalismo, processo de criação de imagem na publicidade e na campanha eleitoral), Xavier, no entanto, parte da produção do olhar e da cena em práticas já institucionalizadas como lugares de representação.

No capítulo I – Cinema: revelação e engano – Xavier traz, já no início do texto, dois pontos de vista diferentes em relação à leitura cinematográfica. O primeiro se refere àqueles que tomam o cinema com lugar de revelação, de acesso a uma verdade; e o segundo àqueles que assumem tal poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente, mas de estratégia. Xavier discute essa questão ao especificar determinadas condições de leituras de imagem através de uma recapitulação histórica, pois o binômio revelação-engano, segundo ele, projeta-se no tempo, referindo-se a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa maior – na aurora do século XX, e o desencantamento dos anos 70-80.

Xavier parte de um exemplo mais simples para explicar como o efeito de uma imagem depende de sua relação com o sujeito em determinadas condições. Passa, em seguida, a uma caracterização mais detida do olhar do cinema e examina dois momentos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexão crítica em torno do que há de engano e revelação nesse olhar. A partir de uma discussão mais geral sobre a simulação do fato – na fotografia, no cinema –, chega a uma questão mais específica: a simulação do sujeito na estrutura mesma do olhar cinematográfico.

Para ilustrar, primeiramente, a noção de verdade, Xavier toma como exemplo o documentário Point of Order (1963), de Emilio de Antonio, filme que focaliza os processos e as seções de tribunal no período do macarthismo nos Estados Unidos, uma remontagem da documentação colhida ao vivo nos interrogatórios. Xavier extrai daí uma situação bastante pertinente para elucidar a noção de verdade muito presente no senso comum de uma sociedade como a nossa. Faz menção a uma testemunha de acusação, inquirida pelo advogado de defesa de um militar acusado de atividades antiamericanas, que vê a verdade em duas fotografias: uma foto maior (reunião com um grupo de pessoas), e uma foto menor (duas pessoas), sendo esta um recorte da maior, ou seja, é a parte de um contexto maior. A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada pedacinho da foto, como também na realidade. Xavier, com esta citação, esclarece que imagem fotográfica e cinematográfica ganham autenticidade porque corresponde a um registro automático – resultado do encontro entre o olhar do sistema de lentes (a objetiva da câmera) e o “acontecimento”, fica depositada uma imagem desse que funciona como um documento. O crítico vai um pouco adiante, para ressaltar o quanto além da foto e de seu contexto, há que se inserir no jogo também o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereça à imagem, ou seja, dentro de que situação se dá a leitura e ao longo de que eixo opõem-se verdade e mentira, revelação e engano. Quando pergunta pela autenticidade de uma imagem, não está discutindo sua verdade em sentido absoluto, incondicionado. Não discute a existência das figuras dadas ao olhar. Pergunta pela significação do que é dado a ver – cuja resposta mobiliza dois referenciais: o da foto (enquadre e moldura), que define um campo visível e seus limites, e o do observador, que define um campo de questões e seu estatuto, seu lugar na experiência individual e coletiva.

Para Xavier, no cinema estas relações, visível e invisível, interação entre o dado imediato e sua significação, tornam-se mais intrincadas. A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e sempre somos levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A combinação de imagens cria significados em cada uma isoladamente. As significações engendram-se menos por força de isolamentos e mais por forças de contextualizações. A montagem sugere e nós deduzimos.

Neste contexto, o ator a serviço da ficção, ganha toda ênfase a importância da pergunta que o observador dirige à imagem em função de sua própria circunstância e interesse. Afinal, na condição de espectador de um filme de ficção, estamos no papel de quem aceita o jogo do faz-de-conta, de quem sabe estar diante de representações, e, portanto, não vê cabimento em discutir questões de legitimidade ou autenticidade. Aceita e até acha bem vindo o artifício do diretor que muda o significado de um gesto. O essencial é a imagem ser convincente dentro dos propósitos do filme que procura instaurar um mundo imaginário. O cinema cria uma nova geografia, com fragmentos de diferentes corpos, um novo corpo, com segmentos de ações e reações, um fato que só existe na tela. Não questionamos as cidades imaginárias, os corpos imaginários. Se o fizer, o espectador rompe o pacto que assina ao entrar na sala escura para assistir a um filme que tem título, diretor, atores.

Conforme o crítico, a leitura da imagem não é imediata, embora pareça. Ela resulta de um processo em que intervêm não só as mediações que estão na esfera do olhar que produz a imagem, mas também aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe. Este não é inerte, pois armado participa do jogo. Para iludir, convencer, é necessário competência, e faz parte dessa saber antecipar com precisão a moldura do observador, as circunstâncias da recepção da imagem, os códigos em jogo.

Ao explanar sobre o olhar do cinema como mediação, Xavier expõe que, entre o aparato cinematográfico e o olho natural, há uma série de elementos e operações que favorecem a identificação do olhar com o da câmera, resultando daí um forte sentimento de presença do mundo emoldurado na tela, simultâneo ao saber de sua ausência (trata-se de imagens, e não das próprias coisas). Para o crítico, discutir essa identificação e essa presença do mundo em sua consciência é acentuar as ações do aparato que constrói o olhar do cinema. A imagem recebida compõe um mundo filtrado por um olhar exterior ao espectador que organiza as aparências das coisas e estabelece uma ponte que se interpõe entre o espectador e o mundo. Trata-se de um olhar anterior ao do espectador, cujas circunstâncias são outras e não se confunde com a do espectador na sala de projeção.

O encontro câmera/ objeto e o encontro do espectador/ aparato de projeção constituem dois momentos distintos, separados por todo um processo. Na filmagem, estão implicados uma co-presença, um compromisso, um risco, um prazer e um poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar. O espectador tem acesso à aparência registrada pela câmera sem o mesmo risco ou poder, ou seja, sem a circunstância. Contempla sem participar, sem escolher ângulo, distância, ou perspectiva própria para a observação. Não tem o trabalho de buscar diferentes posições para observar o mundo. O espectador de cinema tem seus privilégios, mas algo, simultaneamente, lhe é roubado: o privilégio da escolha. Nesse compromisso de ganhas e perdas, ele aceita e valoriza o olhar mediador do cinema, uma vez que suas imagens oferecidas têm algo de prodigioso advindo de sua liberdade ao invadir a intimidade.

O usufruto desse olhar privilegiado, não a análise dele, segundo Xavier, é algo que o cinema tem nos garantido, proporcionando uma condição prazerosa de ver o mundo e estar a salvo, ocupamos posição do olhar sem comprometer o corpo, sem os limites do corpo. Saltamos no espaço e no tempo, estamos em toda parte e em lugar nenhum, ao lado das personagens sem preencher espaços, sem ter a presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo. Observando por este ângulo, Xavier indaga como não exaltar o cinema? Como não pensar sua técnica de base em termos de conquista, de progresso?

O crítico revela os primeiros elogios às potências do olhar cinematográfico – anos 10 e 20 – período de pluralidade de reações. E entre elogios e desconfianças destaca dois tipos de recepção ao advento do cinema: primeiro o coroamento de um projeto já definido na esfera da representação, oriundo do espetáculo popular (reprodução tal e qual das aparências). O cinema assume essa pedagogia e se ajusta como uma luva aos princípios de representação melodramática, com seus excessos, ênfase no gesto, trejeitos, exagero. O segundo vislumbra-se enquanto inauguração de um universo de expressão sem precedente, destinado a provocar uma ruptura na esfera da representação.

Xavier revela as leituras e os posicionamentos críticos deste período, como o close-up, foco de atenção e elogio, que estarão também no centro das reflexões como um movimento de direção à intimidade, vistos como potência maior do cinema. Delineia a respeito dos intelectuais e artistas ligados à arte moderna que lideram uma nova leitura do cinema e se afastam dos valores promovidos pela indústria do cinema – filmes do mercado por demais “domesticados” – muito próximos ao teatro popular. Com eles, o cinema ganha uma recepção mais empenhada, uma vez que este deve surpreender aspectos da plástica da imagem, do trabalho da câmera e da presença peculiar do mundo da tela. Essa nova leitura do cinema devia superar a moldura melodramática, libertar o olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa, adequar a nova arte à sua técnica moderna. O cinema tem que cumprir uma tarefa de redenção.

A vanguarda, segundo o crítico, se estabelece como cultura de oposição, separando o espaço utópico da verdade (cinema, vida futura) e espaço da mentira, da convenção (tradição literária, teatro, cotidiano burguês). Combate a expressão “isso significa aquilo”; aposta no poder analítico do registro cinematográfico, no close-up (ampliação da imagem no espaço), e na alteração de velocidade da câmera – câmera lenta (ampliação da imagem no tempo). Esse poder analítico da imagem cinematográfica acaba projetando uma fé integral no dado visível, na capacidade da imagem cinematográfica, pela força exclusiva de suas relações internas que traz a verdade à tona. Xavier cita Benjamin, onde o filósofo, atento às transformações da sensibilidade geradas pelas novas técnicas diz que “A natureza que se dirige à câmera não é a mesma que a que se dirige ao olhar”.

No relato que o crítico faz à crítica do olhar sem corpo, não detalha os conflitos entre a vanguarda e a cultura de massa em cada país e época. Faz um salto histórico dos anos 20 a 68, período em que a crítica avançou na caracterização do olhar sem corpo e suas implicações, na avaliação de sua estrutura mais comunicativa e sedutora: o cinema clássico – olhar da indústria, expressão da ideologia dominante nos meios. Para Xavier tal cinema é a extensão do que ele chamou de “olhar melodramático”, o cinema clássico é sua modernização. Abandona excesso, ganha sutileza, profundidade dramática, amplitude técnica, em suma, é um ilusionismo completo, é o olhar sem corpo atuando em sentido pleno.

Em relação à crítica a essa naturalidade do cinema clássico, Xavier traz a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operações da montagem de Eisenstein; e a crítica francesa inspirada na fenomenologia, tendo foco maior André Bazin. Para Eisenstein, a imagem cinematográfica não deve ser lida como produto de um olhar. Ela é um fato de natureza plástica e deve ser observada em seu valor simbólico. O close-up, na definição do russo, é o confronto de duas imagens de valores distintos. A imagem nessa acepção passa a ser um signo. Em sua crítica ao ilusionismo da continuidade narrativa, o teórico faz defesa à descontinuidade. Para a fenomenologia, “toda imagem é produto de um olhar”, essencial que ela seja vista como tal. Defende o princípio da continuidade mais radical – homem como ser lançado ao mundo. Critica a falsidade do cinema clássico, e vê na montagem a manipulação, o sentido fechado, organizado pelo cinema. Para o francês, a nova narração não apresenta o discurso construído – tijolo por tijolo -, mas uma realidade virgem, que o olhar vai encontrando e explorando. Sublinha a postura do olhar em sua interação com o mundo, nosso olhar ancorado no corpo. Daí sua minimização da montagem e sua defesa do plano sequência – olhar único sem cortes, observando uma ação desenrolar, um fluir integral.

Xavier destaca que há em ambos a atribuição de um poder de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estilos. Para Eisenstein, há um estilo capaz de dizer o mundo social-histórico, colocando o cinema como potência maior no plano do conhecimento. Para Bazin, o cinema é uma espécie de “terceiro estado da criação” e existe um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua essencial abertura no tempo.

O crítico expõe a intervenção de Jean- Louis Baudry, em 70, que põe em questão a constante promessa de um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque às premissas do cinema em geral, examinando mais a fundo as condições do espectador. Baudry vê na simulação, na produção de efeitos (ilusórios) de conhecimento, o destino maior da nova arte. Questiona, não, estilos particulares de fazer cinema, mas o fundamento mesmo de sua objetividade como técnica, essa mesma objetividade que tem sido a sustentação maior das esperanças de verdade. Xavier revela que o que está em jogo não são as ilusões da técnica, mas a estrutura do olhar da câmera tal como se dá para nós da plateia. A força de encantamento desse cinema não é tanto a imitação do real na tela – sua reprodução integral, mas a simulação de um certo tipo de sujeito-do-olhar pelas operações do aparato cinematográfico. A apropriação ilusória da competência do olhar ideal nos põe no centro, mas é o aparato que aí nos coloca, pois é dele o movimento da percepção de nossa fantasia. Na definição do crítico, essa engenharia simuladora do cinema define seu teatro da percepção total cujo protagonista sou eu-espectador identificado com o olhar da câmera, dificultando a consolidação de linguagens alternativas “mais verdadeiras”, uma vez que esse pecado original está inscrito na técnica.

Xavier encerra esse capítulo delineando que toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem. E elucida uma situação particular, didática nesse contexto, em que é perfeito o funcionamento do aparato, onde se pode verificar o mecanismo da simulação em estado de laboratório. Apresenta uma ampla análise de Vertigo (Um corpo que cai), filme de Hitchcok, figura da ironia e da autoconsciência radical da representação. O filme é a trama da simulação por excelência –condensa as ideias- força em sua tematização do olhar e do ponto de vista, aquela acionada pelo olhar do filme clássico, a qual alia a força de sedução da cena à invisibilidade do aparato. Otimiza, conforme Xavier, de forma irônica as regras do jogo e ataca em seus múltiplos aspectos a questão nuclear da representação.

Para o crítico o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Não somente observar o mundo com ele, mas é necessário colocá-lo também em foco. Enxergar mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos desse olhar, recusando a condição de total identificação com o aparato. Para Xavier, enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível.